Este semestre estou fazendo a cadeira de Produção Científica, e o primeiro trabalho foi uma resenha crítica sobre algum livro.
Escolhi uma obra, escrita pelo escritor Fernando Morais, que na minha opinião como verão à seguir, deveria ser lido por todo graduando de Jornalismo.
Histórias de uma vida no jornalismo
Maria Julia de Medeiros Silveira
Morais, Fernando. Cem Quilos de Ouro: [e outras histórias de um repórter]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Considerado atualmente um dos maiores biógrafos do país Fernando Morais apresenta neste livro um pouco de sua própria história. O autor faz um apanhado das melhores reportagens feitas por ele na época em que era repórter dos melhores e mais conceituados jornais brasileiros entre as décadas de 1970 e 1990, dando em síntese uma aula do que é o jornalismo diário, seus obstáculos e suas glórias. O livro é uma compilação levada a termo pelo jovem jornalista Marcos Simieli, a pedido da editora Companhia das Letras, e seria inicialmente destinado à Coleção Jornalismo Literário, mas foi publicado como obra autônoma.
Sem dúvida além das 12 reportagens, que já são por si só um estímulo ao trabalho de um repórter, os comentários feitos pelo autor em cada uma delas já são um grande atrativo para quem deseja seguir a profissão.
Fernando Morais nasceu em Mariana-MG em 1946. Iniciou sua carreira jornalística aos 15 anos, quando era apenas um Office boy na pequena revista de um banco, quando na falta do único jornalista da publicação teve de substituí-lo em uma entrevista coletiva. Aos 18 anos, Fernando já demonstrava suas grandes habilidades para a carreira, e trabalhou em grandes publicações como Veja, Jornal da Tarde, Folha de São Paulo, TV Cultura e por tantas outras. Na década de 80 ingressou na vida política quando foi eleito Deputado Estadual e permaneceu no cargo por 8 anos (pelo MDB-SP e depois pelo PMDB-SP), e posteriormente assumindo as pastas da Secretaria de Cultura (1988-1991) e de Educação (1991-1993) do Estado de São Paulo nos governos Orestes Quércia e Luis Antônio Fleury Filho. Fruto de uma reportagem, seu primeiro grande sucesso literário foi o título A Ilha (lançado em 1976 e reeditado em 2001), relato de uma viagem a Cuba em período conturbado pós-revolução. A partir daí, a carreira de jornalista foi colocada de lado para deixar espaço para o grande escritor se dedicar à literatura. É autor das biografias de Olga Benário (Olga em 1985 e reeditado em 1994), Assis Chateaubriand (Chatô, o Rei do Brasil em 1994), Casimiro Montenegro Filho (Montenegro, as aventuras do Marechal que fez uma revoluação nos céus do Brasil (2006) e Paulo Coelho (O Mago em 2008), além de livros reportagem como Corações Sujos (2000) que reconstitui a sangrenta página da história da imigração japonesa para o Brasil, e Na Toca dos Leões (2005) onde o autor esmiúça a vida de publicitários da agência W/Brasil. Em 2003 junto ao lançamento do livro Cem Quilos de Ouro: e outras histórias de um repórter, Fernando tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras mas foi derrotado por Marco Maciel, ex-senador e ex-vice-presidente da República.
O livro é dividido em 12 capítulos, cada qual traz uma das reportagens escolhidas para fazer parte da lista das melhores realizadas pelo escritor durante sua carreira jornalística, e em cada uma Fernando detalha como cada uma delas surgiu.
O primeiro capítulo traz a reportagem que deu o título ao livro, Cem Quilos de Ouro, neste trabalho o autor narra a trajetória de um sequestro ocorrido na Bahia, no ano de 1988 em que os criminosos pediram de resgate a quantia de 100kg de ouro. O personagem central é o empresário Guilherme Affonso Ferreira, o Willy, presidente da Bahema, empresa distribuidora de máquinas Caterpillar para o Norte e Nordeste. A pauta surgiu em um jantar, onde o irmão da vítima relatou o fato e chamou a atenção de Fernando, já que na época o crime de sequestro ainda não era tão comum. A reportagem foi realizada em dezembro de 1988 e publicada na Revista Playboy em fevereiro de 1989. Com forte apelo emocional, Fernando utiliza os relatos de Willy e impressiona o leitor com o fato da vítima ter se aproximado tanto de seu carrasco, apelidado pelo empresário de Companheiro, um claro exemplo da Síndrome de Estocolmo (estado psicológico particular desenvolvido por algumas pessoas que são vítimas de sequestro, quando a vítima tenta se identificar com seu captor ou tenta conquistar a simpatia do mesmo). Fernando conversou com policiais, familiares e o próprio Willy para esclarecer os fatos, e nestas conversas pôde destrinchar detalhes como os momentos em que a vítima passou encarcerada numa cela de 2m x 1m e de que forma saiu dali vivo e sem pagar o resgate.
A partir do segundo capítulo as reportagens seguem uma sequência cronológica, da data em que foram realizadas e publicadas. Em O sonho da Transamazônica acabou, Fernando Morais e o fotógrafo Alfredo Rizzutti foram destacados pelo Jornal da Tarde para percorrer a obra feita pelo governo militar. Chamada pelos militares da “obra do século”, a rodovia Transamazônica acabara de ser inaugurada pelo então Presidente da República, general Emílio Garrastazu Medici, e era ainda um grande mistério já que ninguém havia percorrido todo o trajeto da obra. Em 1970, Fernando, Alfredo Rizzutti e Ricardo Gontijo já haviam sido pioneiros na reportagem que mostrou ao Brasil como seriam as obras, na época os três ganharam um Prêmio Esso de equipe. Em 41 páginas, Fernando relata a trajetória dos 3312 quilômetros percorridos pela nova rodovia, e como o povo e as cidades cortadas pela construção da Transamazônica estavam tendo suas vidas e futuros alterados. A reportagem cansativa, que ocupou 20 páginas distribuídas em cinco edições do Jornal da Tarde, elucida os problemas que existiram na construção da rodovia e principalmente as dificuldades que os viajantes teriam durante o percurso, segundo Fernando o sonho da transamazônica acabou juntamente com sua inauguração.
Como um repórter conseguiria viajar à Cuba, em pleno governo militar no Brasil? Essas e outras respostas são dadas por Fernando Morais na reportagem que seria o embrião do livro A Ilha. Intitulada de Primeiro Rascunho de A Ilha o terceiro capítulo, e terceira reportagem, relata as peripécias do jornalista ao tentar romper as barreiras políticas, diplomáticas e comerciais entre Brasil e a ilha do Caribe ocorrido após o golpe militar de 1964. Quando Morais recebeu do colega jornalista Rolf Kuntz, as informações obtidas de um alto funcionário do governo de Havana sob a possibilidade de um brasileiro fazer uma reportagem sobre a atual situação do país, e cedeu seu lugar por saber da vontade de Morais de realizar tal reportagem, o escritor não mediu esforços para concluir tal missão, após uma primeira tentativa frustrada em dezembro de 1974 após ser destacado para uma reportagem em Lisboa sobre os primeiros meses da Revolução dos Cravos, Fernando Morais recebeu a notícia de que o Presidente de Cuba estava disponível para recebê-lo. O texto só foi publicado em agosto de 1975 e detalha os problemas vividos pelo povo cubano 15 anos após o fim da revolução que levou à derrubada do ditador Fulgêncio Batista, liderada por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto Che Guevara o grupo estabeleceu um novo regime pautado na melhoria das condições de vida dos menos favorecidos. O rompimento das ligações diplomáticas com os EUA e a proximidade com as nações socialistas impuseram ao povo uma nova maneira de viver, nessa época Fernando fala sobre as melhorias da educação e na saúde e todas os racionamentos de alimentação e outros gastos da população. Instigante à ponto de tornar-se um livro, Primeiro Rascunho de A Ilha é um capítulo cheio de descobertas.
O quarto capítulo traz a reportagem O homem de Fidel na CIA. Brilhante relato de um dos homens de maior confiança de Fidel Castro durante a época da revolução, conseguido durante os quase três meses que Fernando Morais esperou para entrevistar o Presidente cubano, e que fora publicado em agosto de 1977 na Revista Playboy. A história narra a vida da família Santiago, Tony, Aleida, Tony Jr. e Ricardo, personagens da fatídica trajetória da revolução da ilha. Antônio Santiago García tornara-se espião cubano no grupo dos contra-revolucionários, e fora depois de anos de amor à pátria e luta secreta, morto confundido com um pescador e mercenário. A narrativa é feita através das conversas com Aleida, viúva de Tony e seus filhos.
A reportagem do quinto capítulo, intitulada A guerrilha de Nicarágua, relata a situação do governo de Anastasio (Tachito) Somoza Debayle, diante da pressão da Frente Sandinista de Libertação Nacional. Fernando Morais, conheceu militantes da FSLN em um evento em que foi jurado em Cuba, e recebeu o convite (secreto) de conhecer os ideais do grupo. Na mesma viagem Morais entrevistou o Presidente Tachito e os guerrilheiros, e concluiu em um mês de trabalho, que o último membro da família Somoza a ocupar cargo de Chefe de Estado no país, tinha poucas chances de sair dessa situação. A reportagem foi publicada na Revista Repórter3 em 1978.
República Fantasma intitula a reportagem e o sexto capítulo deste livro, instigado por relatos de um diplomata da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), o jornalista Fernando Morais embarcou rumo à Bir Lehlu, capital da República Saarauí, para desvendar os mistérios de um povo que proclamou sua república e já mantinha na época relações diplomáticas com 63 nações, com embaixadas e tudo. A história conta a luta da Frente Polisário para ser integrado ao Marrocos e as dificuldades vividas por cada habitante, vivendo em tendas e cercados por um gigantesco muro. A reportagem foi publicada na Revista IstoÉ em maio de 1987.
O ano de 1992 foi marcante para o escritor Fernando Morais, foi nesta data que ele conseguira uma entrevista com Frei Betto, escritor e religioso, na época um grande mistério para o povo brasileiro. O capítulo sete foi intitulado de Confissões do Frade e traz uma belíssima e detalhada entrevista com o militante da paz. Uma reveladora conversa que traz ao leitor um sincero e surpreendente diálogo sobre política, jornalismo, sexo, drogas e revelações pouco conhecidas do religioso dominicano sobre os porões da ditadura. Provavelmente a mais interessante história de todo o livro.
Os próximos dois capítulos, ambos trazendo reportagens com Fernando Collor, são sem dúvida leitura imperdível para quem quer entender um pouco mais sobre o período nebuloso que culminou em um processo de impeachment. O Napoleão do Planalto mostra o ápice do poder de Fernando Collor, suas aparições quase que diárias na mídia, e as pretensões de um louco visionário. A entrevista foi publicada em um editorial da revista Marie Claire em 1992, em formato “um dia na vida de...”.
No capítulo nove, O Solitário da Dinda, traz todo o ressentimento e ódio no auge da queda do recém deposto Presidente Collor. Fernando Morais possui o dom de retirar de seus entrevistados tudo aquilo que o leitor que saber, suas descrições minuciosas e precisas, denotam um repórter com a teleobjetiva da intuição sempre atenta e um senso de oportunidade apuradíssimo. A reportagem foi publicada na Playboy em julho de 1995.
Os últimos três capítulos são matérias dignas de estudo em qualquer faculdade de jornalismo. No capítulo 10, a reportagem Entre Kane e os malditos da beat generation, Fernando Morais consegue combinar de forma magistral investigação cultural e o serviço ao leitor. O trabalho surgiu em uma pauta do Jornal da Tarde, em 1996, em que fora determinado escrever uma matéria sobre o Hearst Castle, castelo que o magnata da imprensa William Randolph Hearst mandara construir em San Simeon, na Califórnia. O texto tomou um ar cult, que traz muitas informações prosaicas mas essenciais para o turista, onde ele relata quilômetros rodados, qualidade de hotéis e restaurantes e endereços dos lugares citados na matéria.
O penúltimo capítulo foi o embrião para o livro biográfico sobre Assis Chateaubriand. Em Encontro marcado com Chatô, Fernando Morais inicia seu trabalho de pesquisa sobre o visionário da comunicação no Brasil e deixa um quero mais, que só terá quem for ler a biografia completa. A reportagem foi publicada em 1999 pelo jornal Folha de S. Paulo e traz relatos dos companheiros de Chatô, Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro e Otto Lara Resende.
Fechando o livro, Fernando Morais revive a experiência de ter entrevistado o jovem juiz espanhol Baltasar Garzón, o “cara” que mandou prender o ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Intitulada Ele mandou prender Pinochet, o jornalista usa e abusa de seu poder de persuasão e consegue levantar importantes informações sobre o que estava escondido por trás da prisão. Enfrentou diversos obstáculos, já que o juiz não gostava de jornalistas, era avesso à entrevistas e vivia cercado por muitos seguranças. A matéria foi publicada em 1999 na revista Playboy.
O livro é leitura obrigatória pra quem deseja tornar-se um grande jornalista investigativo, pois com a mesma versatilidade ousadia e persistência que teve no momento de fazer as pautas, Fernando Morais encanta pela forma como escreve e pela maneira que se preparou para as entrevistas. O resultado: matérias que ocuparam muito espaço nos locais onde foram publicadas mas que garantiram o mesmo que Cem Quilos de Ouro.
Um comentário:
Que luxo, hein....crítica lida pelo próprio!!! rsrs Nào ;e pra qualquer uma!! bjs
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